quarta-feira, 13 de julho de 2011

As Cartas de Guilhem

Felipe Guillhem um mentiroso?

Até que ponto podemos considerar assim um indivíduo que se vê obrigado a aceitar o fato de ser enviado a um mundo até então pouco conhecido, com a finalidade de passar informações a respeito de certas descobertas, baseando-nos apenas nos seus relatos?
Quando estava transcrevendo um antigo e raro trabalho sobre a genealogia de Serrinha – Bahia, escrito em 1926 por Antonio José de Araújo, em suas primeiras linhas de preparação ao leitor para o que se seguiria adiante, deparei-me com Felipe Guilhen, ou Guilhem, curioso personagem passageiro da nau de Thomé de Souza. Thomé nomeado que fora por D. João III, criador das capitanias no Brasil, para fundar em terras baianas a primeira base de colonização como Governador Geral do Brasil, viera acompanhado de alguns degredados e aventureiros para trabalhar na nova colônia.

Desde o Castelo de S. Jorge os Reis de Portugal enviam emissários
e exploradores para colonizar o Brasil.

Era Felipe Guilhem, segundo Araújo, "o enviado pela Rainha de Portugal naquela época, como seu leal correspondente responsável para lhe manter informada sobre as descobertas, características e ações da conquista dos portugueses nesse novo mundo. Corria o ano de 1536 quando Guilhem aqui chegou desembarcando na capitania de Porto Seguro e logo deu início às reportagens que anos mais tarde ficariam conhecidas por seus exageros."
Essa versão de Araújo parece estar equivocada, pois não teria sido assim tão tranqüila a razão pela qual Guilhem havia sido enviado para a jovem colônia. Seus feitos, relacionados com sua esperteza e inteligência fazem parte de uma obra do dramaturgo português Gil Vicente, intitulado “Trovas a Felipe Guilhem”, inspiradas justamente na verdadeira personalidade dessa figura.


Os Reis de Portugal, D. João III e a Rainha Cristina da Áustria.

De acordo com Gil Vicente, “em 1519 (ou 1529 segundo alguns historiadores) chegou à corte portuguesa um castelhano de nome Felipe Guilhem, apresentando-se no porto de Santa Maria como boticário. Era um grande lógico, muito eloqüente e experiente. Por isso, muitos sabedores gostavam de o ouvir. Posto em contacto com o rei, disse-lhe que gostaria de lhe dar "a arte de leste a oeste que tinha achado". E para demonstrar os seus conhecimentos fez muitos instrumentos na presença de Sábios (entre os quais se contava o matemático Francisco de Mello, considerado o melhor do reino), como um astrolábio "aparelho de tomar o sol a toda a hora". Todos aprovaram as suas experiências, pagando-lhe o rei uma mercê (recompensa) de cem mil réis de tença (pensão), com o hábito (insígnia) e corretagem da Casa da Índia que valia muito".

O astrolábio, pequeno instrumento que media a altura dos astros,
possibiitando que os navegantes se localizassem am alto mar.

Porém, o rei decidiu chamar o grande astrólogo e matemático Simão Fernandes. Após conversa com o Guilhem, Simão descobre que o castelhano é um falso matemático. Perante esta situação, Guilhem havendo cometido inominável crime de falsidade ideológica, tenta fugir para Castela, mas é descoberto por João Rodrigues Cabrillo, considerado o primeiro jornalista do Novo Mundo, e depois de julgado é levado para o presídio de Aldea Gallega, atual Montijo.
D. Vasco Fernandes Coutinho, que mais tarde seria o primeiro capitão Donatário da Capitania do Espirito Santo, como era usual naqueles tempos, conseguiu recrutar na prisão entre outros, um estranho e valioso companheiro, Felipe Guilhem. O convite para vir ao Brasil foi muitas vezes relutado por Guilhem, mesmo na prisão, mas quando soube que ia ser julgado pelo Tribunal da Inquisição, recém instalado e que ao pisar em solo brasileiro seus crimes seriam perdoados, o mesmo acabou aceitando o seu “convite”. Dom Vasco acreditava que seus conhecimentos, mesmo sabendo-o chegado à pilantragem, seriam úteis no Brasil. D. João III havia concedido a D. Vasco o “Alvará Régio de Cessão” que o tornava senhorio e capitão de um navio e suas munições, levando suprimentos para o Brasil. Parte então de Lisboa nessa embarcação com cerca de sessenta homens a bordo, a maioria degredados como Felipe Guilem.


Antigo presídio militar português.


Naus portuguesas cruzando o Atlêntico com destino ao Brasil.

Felipe Guilhem a bordo do navio comandado por D. Vasco Fernandes Coutinho desembarca em Porto Seguro no ano de 1536. Como teria sido boticário, uma espécie de farmacêutico, anos antes  na Espanha, oportuno curioso passa a examinar algumas pedras trazidas por indígenas e alguns mateiros, destacando-se de pronto como minerólogo e logo se revela também um conveniente sertanista em algumas rápidas incursões mata a dentro na busca de pedras preciosas, em particular esmeraldas. Eram muitas as notícias da existência dessas maravilhas no sertão e coube ao próprio Thomé de Souza, “notadamente governador frio e prático”, conhecedor das cartas que Guilhem enviara à Rainha contando exageradamente das maravilhas encontradas em terras brasileiras, mandar pessoalmente que Felipe Guilhem saísse a explorar a região na busca das cobiçadas pedras e outras riquezas que encontrasse.

Primeira visão paradisíaca de Porto Seguro.

Desembarque da expedição e recepção aos navegantes.

Marco histórico do descobrimento e edificações de Porto Seguro.

Talvez Guilhem fizesse essas cartas cheias de fantasiosas descrições na esperança de cair nas boas graças dos monarcas e com isso conseguir seu regresso para Portugal, onde pessoalmente poderia descrever melhor tudo o que dizia ter visto e descoberto. Mas parece que as coisas não saíram como ele esperava, resultando na ordem recebida de Thomé de Souza que se deixara contagiar por elas. Em carta a D. João III, Guilhem comunica que havia sido mandado pelo Governador Geral a “descobrir, tomar altura, olhar a disposição da terra e tudo que nela havia, porque sem sombra de dúvidas, esmeraldas e pedras finas seriam encontradas.” O pobre homem contudo, não teria se sentido entusiasmado para se embrenhar naquelas matas desconhecidas e complementou dizendo “Homem tão velho como eu, atrever-se a tão comprido caminho, seria dizerem que me falta o que cuidam que me sobeja”; em outras palavras estaria dizendo que tinha juízo de sobra para não se aventurar, na idade em que se dizia velho, a correr atrás daquilo que ele mesmo sabia não existir, a tal “serra resplandecente”, uma verdadeira montanha de esmeraldas.

Visão do que seria a famosa Serra Resplandecente.

A cobiçada esmeralda em estado bruto. Assim a teria visto Felipe Guilhem.

Felipe Guilhem não teria sido o criador dessa legendária montanha, pois foram alguns indígenas que surgiram na povoação portando algumas pedras verdes, identificadas como esmeraldas. Questionados por ele de onde as teriam encontrado, diziam que delas havia muitas espalhadas pelo chão em uma “serra verde” no meio das matas do sertão, a vários dias de distância. Como ainda não haviam encontrado vestígios de ouro ou prata, as esmeraldas passaram a ser o objetivo daqueles aventureiros colonizadores e a ambição de localizar a tal pedreira verde incendiou o ânimo daqueles degredados que de repente foram transformados em sertanistas. Não se tem notícia de que Guilhem teria partido naquela incursão, pois organizar tal expedição exigia muito tempo e recursos financeiros os quais ele particularmente não dispunha. Nascido em 1487 Felipe Guilhem havia chegado ao Brasil já com 49 anos, de certo modo em idade de fato avançada para aventurar-se atrás de algo que ele mesmo não acreditava existir. Sem lograr retornar para Portugal, formou família na colônia e de acordo com o testemunho de um padre jesuíta ainda estaria vivo em 1571 aos 84 anos, denunciado que fora por blasfêmia e prática do judaísmo.

Entre belezas naturais a mata atlântica escondia riquezas fantásticas
mas também perigos desconhecidos dos colonizadores.

As esmeraldas no entanto pareciam valer qualquer risco.

As maravilhosas pedras verdes, esmeraldas brasileiras.

Colar de esmeraldas e brilhantes, um contraste inigualável.

Maravilhosa coroa de esmeraldas e diamantes.

Porém, transformada em lenda, a “Serra Resplandecente” não deixava de desafiar os desbravadores dos sertões da jovem Nação. Cem anos após o último registro de vida de Felipe Guilhem, caberia ao bandeirante Fernão Dias Paes Leme a derradeira aventura em busca das maravilhosas pedras verdes. Em agosto de 1672 o visconde de Barbacena, Antonio Furtado de Castro do Rio Mendonça, então governador-geral do Brasil nomeado por El Rei D. Afonso VI de Portugal, por seus oficiais convoca à câmara de São Paulo a Fernão Dias Paes Leme e lhe dão conhecimento da carta régia que o encarrega de montar expedição em busca de prata e esmeraldas. Empreitada das mais difíceis, somente dois anos depois é que o bravo bandeirante partiria em uma das aventuras mais dramáticas da história do desbravamento dos sertões brasileiros, buscando a misteriosa montanha mencionada em cartas por Felipe Guilhem.

Fernão Dias Paes Leme e seu filho Garcia, bravos bandeirantes.

Ruinas deixadas pelos jesuítas que em muitos sítios fracassarem
na tentativa de se estabelecer.
Mina de ouro e prata abandonada no meio da floresta.

Foi uma das maiores e importantes incursões desbravadoras de que tem notícia a história brasileira. Fernão Dias, então com cerca de 70 anos de idade, se fez acompanhar por seu filho Garcia, por seu genro Borba Gato e alguns padres jesuítas, além de uma numerosa comitiva. Ao todo eram cerca de seiscentos homens, dentre os quais quarenta homens brancos ou mamelucos e uma grande quantidade de índios catequizados. Durante a marcha em alguns locais ia deixando parte dessa comitiva com o objetivo de manter novos aldeamentos, com isso acabou por fundar diversos arraiais que mais tarde dariam origem a vilas e algumas cidade que hoje são conhecidas. Em verdade, depois de quatro anos de busca infrutífera, já bastante debilitado pela malária que o acometera, acabou por encontrar uma porção de pedras verdes em rochas do leito de um riacho e em seu delírio acreditava serem esmeraldas, no entanto eram apenas turmalinas. Irremediavelmente acometido pela febre, Fernão Dias Paes Leme no outono de 1681 morre no meio da mata sem saber que nunca havia encontrado as tão sonhadas esmeraldas.

A morte de Fernão Dias, cujo corpo foi sepultado junto às pedras
verdes que encontrara julgando ser esmeraldas.

Turmalinas verdes, que Fernão Dias pensou serem as sonhadas esmeraldas
da Serra Resplandecente.

Dizer que o lendário bandeirante, assim como outros aventureiros foram vítimas da ilusória “Serra Resplandecente”, um sítio que nunca foi localizado, ou como diz Antonio José de Araujo, que mencionamos no início desta postagem, “...conseqüência de uma dessas fantasias, a de Guilhem, que para Portugal escrevia a miúde, mandando contar coisas do arco da velha, iríadas, eram elas”. Pode ser verdade, mas, acima de tudo, estava o sonho de enriquecimento desses mesmos aventureiros, talvez desesperadamente esperançosos por retornar à terra natal como vitoriosos sobre um mundo selvagem até então desconhecido, mesmo que isso representasse colocar em risco a própria vida.


As "Trovas a Felipe Guillhem" - Por Gil Vicente, como no original enviados quando preso.

"Con sobras de pensamiento / Que continos penso yo,
 No supe de los tormientos / que la desdicha os dió,
 Sino ahora á dos momentos / Que supe vuestras pasiones,
 Todas buscadas por vos: / Porque los santos barones
 Concluen que las prisiones / Son por justicia de Dios.

 Á muchos hizo espantar / Vuesa próspera fortuna.
 Pues nunca viste la mar / Ni arroyo ni laguna,
 Supiste muy bien pescar.
 Diciendo el pueblo travieso / Contra vós, sabio profundo,
 Por emendarse el avieso / Justo fue fuese preso,
 El mas suelto hombre del mundo.

 Yo les dije con buen zelo, / Por el bien que en vos se encierra:
 Este hombre subió al cielo, / Del cielo miró la tierra,
 En la tierra vido el suelo, / Del suelo vió el abiso,
 Del abiso vió el profundo, / Del profundo el paraiso,
 Del paraiso vió el mundo, / Del mundo vió cuanto quiso.

 Ansí que por esta via / Es de los sabios el cabo,
 Que sin ver astrolomia / Él toma el sol por el rabo,
 En cualquiera hora del dia. / Respondieron al contrario,
 Diciendo: No es verdad; / Porque dende chica edad
 No fue sino boticario, / Hasta ver esta ciudad.

 Respondiles con gran ira: / No digais mal de mi amigo,
 Que cuando trata em mentira, / La mentira es ser testigo,
 Tan dulcemente la espira. / Alegué por parte vuestra
 Lo que sé de vuestro engaño, / Porque mostrais de una muestra,
 Despues vendeis falso paño, / Como luego se demuestra.

 Esto me plugo escribir / Porque habeis de responder,
 Y otra vez me habeis de oir, / Para acabar de decir
 Lo que os queda por hacer. / De todo esto es de creer,
 Que que la bondad de esta tierra / Siempre fue y ha de ser,
 Que á sí misma hace guerra, / De buena, por bien hacer.

 Si el trovado no está / Conforme á vuestra elocuencia,
 Pues que dice la verdad, / Repórteme á la sentencia,
 Lo al vaya como va."

Portanto, creio que inédita para "nosostros" aí estão as tais trovas tomadas do livro "Obras de Gil Vicente" na edição de 1843 pg. 377. Originalmente foram feitas em 1519 para o amigo que havia sido preso por suas tentativas de enganar aos Reis de Portugal, D. João III e Rainha Cristina da Áustria.



6 comentários:

  1. vc tem a referencia sobre Felipe Guilhem?

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    1. A primeira referência a esse personagem encontrei em um livro editado em 1926 por Antonio José de Araújo, meu tio avô. Complementos dessa história resultaram de pesquisas em diversas fontes, inclusive no wikipédia. Não creio que vá encontrar facilmente, como organizei, nada que não esteja aqui, portanto...

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    2. Acabo de complementar a história de Guillhem com as "Trovas a Felipe Guillhem" escritas por seu amigo Gil Vicente em 1519. Fique à vontade para complementar sua publicação. Basta, mais uma vez, copiar e colar.

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  2. Quantos semelhantes a Felipe Guilhem, aportaram por aqui naqueles tempos?

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    1. Com toda razão nobre amigo. Porém, creio que tão inteligente quanto essa figura que, se não inventou, dourou a pílula de tal maneira que até o pobre Fernão foi na conversa. Tudo com o objetivo de voltar para casa, para a Europa, é claro.

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